Um relatório da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) provocou um debate “truncado”, na avaliação de especialistas. O documento tratava do plano de saúde acessÃvel, que limita o atendimento para permitir mensalidades mais baixas. Ana Carolina Navarrete, pesquisadora do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), diz que o texto afirmava que parte dos benefÃcios já eram ofertados no mercado, dando a entender que houve um “aval” para a venda desse produtos. “Não há regularização de alguns pontos desse plano acessÃvel. Isso a ANS ponderou no relatório”, observa.
A coordenadora institucional da Proteste, Maria Inês Dolci, destaca que esses planos não estão regulados e que não são bons para o consumidor. “Eles não dão direito a quase nada. PouquÃssimos exames são aceitos e qualquer procedimento mais complexo não é autorizado. Só são mais baratos”, opina.
A ANS comentou que o relatório não autoriza a venda desses produtos, mas que grande parte das caracterÃsticas apontadas como essenciais já são permitidas, entre as quais, rede hierarquizada; coparticipação do beneficiário; protocolos clÃnicos definidos junto à rede prestadora de serviços; e segunda opinião médica nos casos de maior complexidade.
“Ao contrário da entidade pública, à qual é permitido fazer apenas o que a lei lhe atribui, as entidades privadas podem fazer o que a legislação não proÃbe. Portanto, as operadoras de planos de saúde podem formatar produtos com as caracterÃsticas citadas acima, conforme os parâmetros da regulação já existente, com preços mais acessÃveis, mas preservando sua sustentabilidade no longo prazo”, diz a ANS.
Para a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), é preciso criar um modelo de regulamentação especÃfica para o plano acessÃvel. “O relatório da ANS apontou que diversos mecanismos apresentados já são comercializados. É verdade. Mas é preciso que essas regras estejam compreendidas em único produto, o que dará racionalidade e transparência na relação entre consumidores, prestadores de serviço e operadoras”, diz a presidente da entidade, Solange Beatriz Mendes.
Para a executiva, a discussão é ampla. “A saúde não é um produto barato. Plano acessÃvel em saúde quer dizer redução de custos. Por exemplo, rede hierarquizada com médico generalista, que indique o especialista, é uma forma de diminuir custos. Mas pode ser encarado como restrição de acesso. É preciso ficar claro a quem contrata esse produto suas condições”, explica Solange.
FONTE CAPITOLIO
Planos de saúde não pagam nem 20% do valor de multas recebidas
Embora tenha aplicado quase R$ 1,3 bilhão em multas às operadoras de saúde em 2016, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), responsável pela regulação do setor, recebeu somente R$ 172 milhões -13%.
O cenário é semelhante no acumulado de cinco anos, quando a arrecadação se limitou a 19% -R$ 493 milhões dos R$ 2,6 bilhões cobrados.
Ao mesmo tempo, crescem os valores aplicados em multas por irregularidades cometidas pelos planos. Em 2016, a quantia mais que dobrou em relação ao ano anterior.
Neste ano, até outubro, dados obtidos pela Folha apontam a aplicação de 12.078 multas, num total de R$ 1,1 bilhão, indicando a possibilidade de novo recorde. Questionada, a ANS atribui esse aumento a uma força-tarefa para redução do passivo de processos no setor. Mas especialistas questionam a baixa punição.
"O modelo atual ainda é permissivo", afirma Ana Carolina Navarrete, pesquisadora em saúde do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). "Se não investe na arrecadação, acaba batendo com luva de pelica."
Na última semana, parecer apresentado à comissão do Congresso que analisa mudanças na lei dos planos gerou polêmica ao propor redução no valor das multas. Hoje, variam de R$ 5.000 e R$ 1 milhão, a depender da infração. Nos casos de negativa de cobertura prevista em lei, o valor é fixado em R$ 80 mil.
A proposta do deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), relator da matéria, prevê que, nos casos de negativa "injustificada" de atendimento, a multa não ultrapasse dez vezes o valor do procedimento. Se uma consulta custa R$ 80, a multa seria de até R$ 800.
A medida deve afetar de forma expressiva o valor das sanções aplicadas. Sete em cada dez multas são por problemas de cobertura. Marinho diz que a proposta segue os princÃpios de "razoabilidade e proporcionalidade" e visa impedir que o valor aplicado em multas seja repassado aos consumidores.
"As multas têm por objetivo punir as operadoras que descumprem a lei e os regulamentos, no entanto, não podem sacrificar a própria existência da operadora." "A atual normativa permite que a negativa indevida de atendimento que custa R$ 40 gere uma multa de astronômicos R$ 80 mil, fato recorrente no dia a dia do setor."
Mesma posição têm representantes de operadoras dos planos de saúde, que contestam o valor das multas. O faturamento do setor em 2016 foi de R$ 161,4 bilhões.
IMPACTO
Leandro Farias, do Movimento Chega de Descaso, que representa usuários de planos de saúde, também defende que os valores sejam alterados -mas para cima.
"Quanto vale uma vida? Em certos momentos de negativa de cobertura, dependendo da gravidade, isso pode gerar um óbito", afirma.
Navarrete concorda. "A multa tem que ter proporção com a infração, mas não com o valor do procedimento negado. Negar cobertura tem impacto maior do que isso."
Para a pesquisadora, a proposta deixa de corrigir as causas do problema e facilita descumprir as regras. "É como se comprasse o direito de poder infringir a regulação", diz. "Essa proposta traz uma redução no poder punitivo da ANS, que já é ineficaz hoje. E isso acaba sobrecarregando o Judiciário", afirma o advogado e especialista em direito à saúde Rafael Robba.
Fora do Congresso, o debate sobre a revisão dos valores das multas já atinge a ANS, que, em agosto, abriu consulta pública sobre o tema, na qual propõe alterar o valor fixo de R$ 80 mil para variável de R$ 20 mil a R$ 160 mil, conforme o procedimento. A medida também recebeu crÃticas.
A ANS diz que a necessidade de revisão foi "ponto pacÃfico" entre entidades nos debates anteriores à proposta. "A partir dessas discussões, pensou-se em um escalonamento de valores que, ao mesmo tempo, pudesse mitigar a desproporcionalidade, contemplasse uma maior razoabilidade e mantivesse o caráter educador da sanção, para desincentivar novas práticas infracionais", informa.
A agência afirma que avalia as contribuições recebidas sobre o tema. Em relação à cobrança das multas, ela informa adotar nos processos todas as medidas legais disponÃveis e que a adesão ao pagamento "vem aumentando nos últimos anos".
"Contudo, a decisão pelo pagamento em esfera administrativa é decisão da empresa, sendo um fator que independe da ação da ANS." Os casos não cobrados são inscritos na dÃvida ativa e encaminhados para cobrança judicial. A ANS não informou o valor total da dÃvida.
CIRURGIA
O aval para fazer duas cirurgias indicadas pelo médico só veio para a aposentada VirgÃnia Farha, 79, após quase 20 dias de espera no hospital.
A autorização, porém, não veio do plano de saúde que ela mantém há 40 anos, mas de uma liminar, obtida após negativa da operadora em fazer os procedimentos.
Em meio ao impasse, o filho dela, Paulo, chegou a receber duas contas do hospital. Valor? Mais de R$ 220 mil. "Quase tive um infarto", relata ele, que acompanhou a mãe durante a retirada de um nódulo do rim e inserção de uma válvula no coração.
Casos como o de VirgÃnia, que envolvem negativa ou restrição de cobertura, concentram hoje 63% das reclamações recebidas pela ANS. No ano passado, foram registradas 90 mil reclamações. Em geral, cada reclamação gera uma notificação à operadora e um processo. Se não houver resposta, a agência pode aplicar a multa.
Em geral, cada reclamação gera uma notificação à operadora e um processo. Se não houver resposta, a agência pode aplicar a multa. O prazo entre apuração e decisão leva em torno de 255 dias.
Boa parte dos usuários, no entanto, desconhece a possibilidade de recorrer à ANS ou deixa de acompanhar os processos, afirma Leandro Farias, do movimento Chega de Descaso.
Nesse caso, especialistas apontam dois destinos mais comuns. O primeiro, o SUS -desde 2001, já foram notificados mais de 3 milhões de atendimentos de usuários de planos de saúde na rede pública. O outro, a Justiça.
"Quando fala de urgência e emergência, o usuário dificilmente procura a agência, mas o Judiciário", diz Ana Carolina Navarrete, do Idec.
Um balanço de ações no Tribunal de Justiça de São Paulo contra planos de saúde mostra crescimento de 768% desde 2011 no volume em primeira instância. Em segunda instância, o aumento foi de 157%.
Os dados são do Observatório de Judicialização da Saúde Suplementar, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. Casos de negativa ou exclusão de cobertura são quase metade das ações.
"A judicialização cresce ano a ano", diz o advogado Rafael Robba, para quem o problema, que repercute em todo o setor, se agrava diante da falta de punição. "As ferramentas para combater as abusividades são insuficientes."
OUTRO LADO
Representantes das operadoras de planos de saúde atribuem o baixo pagamento de multas a questionamentos sobre o valor e à falta de recursos do setor.
"Se fizer essa estatÃstica em todos os outros órgãos de fiscalização, vai encontrar números parecidos", afirma Solange Mendes, presidente da FenaSaúde, associação que representa as principais empresas.
"É porque há contestação. É um direito legÃtimo", diz ela, para quem tem ficado "mais frequente" a ida ao Judiciário contras as multas.
Também representante das operadoras, a Abramge contesta o valor cobrado e diz que parte do não pagamento ocorre diante da falta de recursos do setor.
"Por vezes, a soma das autuações supera o resultado econômico dos planos de saúde, tornando tal pagamento impraticável", diz.
Em nota, a associação defende ainda "rever com urgência as regras que definem a dosimetria das multas, equilibrando as penalidades aplicadas com a realidade financeira do setor".
Mesma posição tem Mendes, da FenaSaúde. "Negar cobertura de emergência é diferente de descumprir um prazo de atendimento. A própria agência busca corrigir isso", diz ela, que admite que o valor das multas sai "da conta do consumidor".
"Por isso não é desejável impor multas altÃssimas."
Para ela, a proposta apresentada na Câmara dos Deputados para reduzir o valor das multas é positiva. "Ela é menor e mais moderada do que a atual, mas é inibidora sim, porque tem agravantes e aplicação coletiva."
Segundo Mendes, parte das queixas em relação à negativa de atendimento, tema que responde por 76% das multas hoje aplicadas, ocorre devido ao prazo para que a operadora possa verificar a necessidade do serviço.
"Temos que tentar frear o nÃvel do desperdÃcio", afirma. "Se recebo um pedido de cirurgia ortopédica, onde o médico informa que vai usar ´x´ materiais, a operadora tem um padrão para isso. E para verificar precisa de tempo", completa.
Para Mendes, o total de reclamações e de multas é baixo diante do tamanho do setor -com cerca de 47 milhões de usuários. "O setor entrega o que vende. Não vou qualificar se bem ou mal. Mas entrega."
FONTE FOLHA