Em meio à grave crise que afeta o sistema de saúde no municÃpio do Rio, com greve de profissionais por atraso de pagamentos e falta de materiais e remédios, especialistas lamentam o retrocesso que a atenção básica pode sofrer na cidade. Diante do avanço observado nos últimos 15 anos no cuidado da população, eles reforçam a necessidade de priorizar investimentos no setor para evitar prejuÃzos ainda maiores no futuro.
As polÃticas de atenção básica, ou primária, são aquelas que servem como porta de entrada ao sistema público de saúde no municÃpio. São realizadas próximo às residências, em visitas domiciliares feitas por agentes comunitários ou pelo atendimento nas chamadas clÃnicas da famÃlia.
Implementadas a partir de 2009, foram responsáveis por ampliar a cobertura de atendimento no Rio, que passou de 3,5% da população, em janeiro daquele ano, para cerca de 70% em 2016. Atualmente, existem cerca de 1.200 equipes de saúde da famÃlia e mais de 200 unidades básicas de atendimento.
Pesquisadora da Escola Nacional de Saúde da Fiocruz (Ensp), Ligia Giovanella afirma que, por mais que haja crÃticas ao modelo de gestão das organizações sociais (OS), é inegável que a implementação das polÃticas de atenção básica à saúde representou um avanço para o Rio nos últimos anos.
— Elas têm impacto positivo sobre todo o sistema público de saúde porque focam na promoção de cuidados e na prevenção de doenças com abordagem humanizada, que acompanha a população por todo o ciclo de vida — afirma a pesquisadora. — Há inúmeros estudos que mostram que trouxeram benefÃcios como a redução de Ãndices de mortalidade infantil e o esvaziamento nas emergências dos hospitais.
No Rio, são as OS que, por meio de contratos com a prefeitura, administram as iniciativas de atenção básica. No entanto, com os recentes atrasos de repasses, diversas unidades de atendimento têm sofrido com a falta de pagamentos a profissionais e fornecedores.
Com salários atrasados, médicos, enfermeiros e agentes das clÃnicas da famÃlia entraram em greve no mês passado, reivindicando quitação das dÃvidas, reabastecimento das clÃnicas com remédios e manutenção do orçamento da pasta para 2018.
— A paralisação começou diante da percepção de que tudo que foi construÃdo nos últimos anos está sendo destruÃdo pela falta de recursos — afirma Moisés Vieira, presidente da Associação de Medicina de FamÃlia e Comunidade do Estado do Rio de Janeiro (Amfac-RJ). — Temos tido dificuldade de diálogo com a prefeitura, mas esperamos que isso mude.
Coordenadora de Saúde e Desenvolvimento Social do Viva Rio, OS que administra três das dez áreas básicas de saúde do Rio, Anamaria Schneider afirma que o investimento na atenção primária deveria ser prioritário justamente por proporcionar benefÃcios à população e pela economia de custo.
— Um exemplo é o exame regular de papanicolau, ação preventiva para o câncer do colo do útero. Detectado antes do surgimento dos sintomas, as chances de sucesso do tratamento são muito maiores. Se a pessoa só se tratar ao começar a sentir os efeitos da doença, o tratamento será mais caro, com menos chances de sucesso — explica.
De acordo com Schneider, os atuais impasses com a prefeitura no pagamento de recursos e a crise no setor podem colocar em xeque os investimentos e progressos feitos por quase uma década na cidade do Rio — além do modelo de gestão por OS.
Peça fundamental das iniciativas de atenção básica à saúde, os agentes comunitários representam o principal elo entre o atendimento médico e a população. Estão também entre os que mais sofrem com a crise do setor, já que, além de alguns estarem com salários atrasados, também sentem no cotidiano a falta que seu trabalho faz às comunidades.
Morador de Acari há 25 anos, na Zona Norte do Rio, Messias Vital trabalha há sete como agente de saúde na ClÃnica da FamÃlia Marcos Valadão, que atende à região. Sem a certeza de que receberá o salário de dezembro em dia (os últimos atrasaram), nem previsão para o pagamento do décimo-terceiro, ele é responsável pelo acompanhamento de cerca de 220 famÃlias.
— Antes, o que havia na comunidade era aquele acolhimento do posto de saúde, em que a pessoa passava a madrugada na fila para pegar uma senha e fazer um simples exame preventivo. Hoje, na clÃnica, a pessoa chega e faz na hora — afirma Vital. — Também vamos regularmente às casas, com atenção especial para gestantes, crianças, pessoas com hipertensão, diabetes, acamadas ou com problemas de saúde mental.
Devido à crise, ele conta que a clÃnica em que trabalha não está mais realizando exames básicos por falta de material. Além disso, afirma ter colegas passando necessidade:
— Algumas agentes são mães solteiras, que dependem exclusivamente do salário. Temos feito vaquinhas para comprar o básico e ajudá-las, para que não desanimem e possam continuar na luta. Esperamos que as coisas melhorem, mas o panorama não é animador.
Questionado sobre a importância da atenção básica, o secretário municipal de Saúde, Marco Antonio de Mattos, diz que reconhece o trabalho como fundamental. Sobre a crise no setor, afirma que as dificuldades decorrem de dÃvidas deixadas pela gestão passada, ações anteriores que não levaram em consideração a previsão de orçamento para 2017 e queda de receitas.
— Estamos trabalhando para botar ordem na casa, pagar as dÃvidas deixadas pela gestão anterior e tornar a saúde menos custosa, porém sem perder a qualidade — afirma o secretário. — Para 2018, a Secretaria Municipal de Fazenda já sinalizou que espera um aumento da arrecadação, e por isso o prefeito já prometeu recompor o orçamento da saúde com R$ 553 milhões. Há ainda uma emenda ao Orçamento que será votada pela Câmara remanejando outros R$ 550 milhões de outras pastas.
Especialista em gestão de saúde e professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (Ebape/FGV), Fátima Bayma afirma que o modelo de atenção básica deve ser seguido como referência. Para contornar a crise, sugere parcerias entre o poder público e iniciativas privadas:
— Com a falta de recursos, a saÃda para minimizar o problema pode estar na procura por projetos inovadores e parcerias com empresários para iniciativas voluntárias. O que não se pode fazer é abandonar algo que está dando certo.
FONTE O GLOBO