1º LUGAR CONCURSO CONTOS
DR EDUARDO DINIZ
A noite em que fui velado
Já era bem tarde quando a sala de pêsames com o caixão negro esvaziara-se. Não fosse tanto passar a manhã toda sem comer, as beatas ainda iam à igreja àquelas horas: dez horas da escura, túrgida e tenebrosa noite. Embora estivesse embebido de tristeza pela morte da querida pessoa que deixara, eu, sob palmos de terra, tracei atrasado, os mesmos passos das oradoras. A igreja não muito distava-se dali e não havia mais o que eu fizesse naquela noite, só me restava saber o que haveria de acontecer naquela igreja e com aquelas chaves que uma das assinas carregava consigo. Não evitei, durante o caminho, que me esgueirasse em becos ou atrás de postes e, num desses devaneios encontrei uma faca afiada, ensanguentada, um pouco velha, mas recém-utilizada. Não pensei duas vezes: tomei-a comigo.
Aquela igreja, de portas grossas e pesadas, não mimetizava seu aspecto gótico; seus ecos em dia de missa guardavam aspectos sombrios. Agora estamos frente à igreja e talvez seja agora que aquelas chaves alimentem minha curiosidade. Mas minha expectativa falece ao perceber que as portas do templo aguardavam-nas entreabertas. Eu, que não poderia ser notado, infiltrei-me bem pela porta dos fundos da capelinha. Estava, então, sobre o altar (escondi-me atrás de uma desnecessariamente grande imagem da imaculada); o local era alto e me dava uma ótima visão das beatas e cada movimento seu. Complicado ficou quando a irmã-das-chaves apertou as portas e abriu o interruptor, deixando que o espaço fosse iluminado apenas pela pouca luz que atravessava os vitrais melancólicos.
Embora tivesse sido tolido da certeza, fiquei mais confortável, já que as sombras me envolviam. Não podia ver o rosto, nem mesmo o semblante, de qualquer uma delas; só sei que a irmã-das-chaves e a irmã-que-comandava-o-movimento andavam como que esta fosse mãe e aquela, filha (não me esquecendo que a das-chaves perdera uma irmã biológica recém enterrada). Uma, duas, três, sete velas acenderam-se. Cada beata segurando uma, caminhavam lentamente, como quem faz cálculos minuciosos. Ao fim daquele caminhar, elas param em frente a um caixão que me parecia preto – mas tudo ali era umbroso. E, para o despertar da minha memória curiosa, a irmã-das-chaves toma consigo o molho e aproxima-se do caixão, penetra-o a chave e o abre.
Aquelas fiéis não trocavam um diálogo, mas fazia tudo em sincronia, como se houvessem ensaiado: elas uniram suas forças e retiraram o corpo do caixão – nesse instante senti um calafrio tétrico, pois o corpo me parecia muito familiar. Não vi onde foi parar o corpo, tinha me distraÃdo. A irmã agora fecha o caixão e utiliza aquelas mesmas chaves para trancá-lo com o mesmo suspense que o houvera aberto. Em sopros abruptos aquelas velas se apagaram, e eu – que me acostumara com a reveladora luz das chamas – não via mais nada, parecia-me que nem mesmo a lua existia agora. Parece que saÃram. Valhi me do tato para arrastar-me pelas escadas do altar; senti o gelado pedestal, era ali que estava o caixão. Peguei a faca velha e ensangüentada que tinha comigo, penetrei-a em onde achei que estava a fechadura, mas a faca emperrou. Borbulhando de medo, resolvi ir embora. Arrastei-me outrora pelos mesmos métodos que antes fizera, mas antes que pudesse abrir a porta dos fundos da capelinha, ouvi uma voz: “Ei”. Tremi. Continuou: “Não se esqueça da sua faca”. Olhei para o lado, vi um espelho, peguei-o não sei por quê. Saà correndo até o beco mais próximo. Respirei fundo e ofegante: era meia-noite.
Tomei as ruas de casa. Eu parecia ser seguido. Não quis olhar para trás, só acelerei o ritmo dos meus passos; pensei em utilizar o espelho para uma retrovisão – hesitei. Já passava pela venda do Vai-com-deus. Vai-com-deus era um senhor daqueles rispidamente educados, que fazia-se cristão e ordenava o seu freguês, quantas vezes fosse necessário, que fosse acompanhado de Deus; até que houvesse resposta. Ninguém via os olhos de Vai-com-deus, ou melhor, o olho. Ele dizia ter perdido o esquerdo num acidente trabalhista (às vezes eu me perguntava que acidente foi esse – mas não) e estava sempre com um par de óculos tão escuros que acredito que nem ele enxergava.
Espere! O portão de casa aberto? Devo ter deixado-o assim, na pressa, quando fiquei sabendo sobre mamãe. Entrei e tranquei tudo como deveria, até a porta. Agora é melhor lavar o espelho, se ainda quero tê-lo. Este espelho parece significar alguma coisa para mim, não sei o quê. Ao entrar no banheiro, notei aquela faca enferrujada dentro da pia, com o susto, olhei repentinamente para trás e investiguei. Nada de anormal. Voltei para o banheiro e percebi que não havia faca alguma. Devem ser alucinações – o momento é propÃcio. Quando tomei o espelho à luz vi que não era um espelho, era uma moldura com uma foto minha e, no rodapé havia uma estrelinha seguida da minha data de nascimento e, logo abaixo, uma cruzinha seguida da data de amanhã. O sino da igreja badala meia-noite. A data de hoje, então.
A luz apagou-se.
Mais um blackout?
Vi um vulto.
A porta do banheiro se tranca.
Mas isso só é possÃvel do lado de dentro!
Meu pescoço agora estava ameaçado pela faca, seu gume e sua ferrugem. Aquela mão gelada, pálida e o cheiro de formol me esclareciam (ou não) algumas coisas. Eu conhecia aquele toque... que agora mais parecia um torque. Tomava, eu, alguns puxões que pressionavam cada vez mais minha garganta – quanta força! –, mas que não eram em vão. Eram como perguntas. E, como se houvesse algum diálogo, eu as respondia com rigidez: “Sim, eu tentei matar-te!” ... “Porque não és o que dizes ser” ... “Parece que usei pouca toxina.” ... (uma risada? – fraca e rouca) ... “Agora juras que a vingança é o caminho?!”. Me exauri. Não conseguia mais falar, faltava-me fôlego, forças e coragem. Depois de rebater-me algumas vezes, aquela voz que outrora fora acolhedora, resolveu falar-me: “Só tiro de ti o que eu mesma te dei.”
Não me lembro de mais nada, a luz nunca se acendeu de novo.